Crónica de Neto Gomes em homenagem a Lamy, uma das figuras emblemáticas da cidade de Loulé.

Numa espécie de reencontro e despedida com a Mãe Soberana, Nossa Senhora da Piedade, que ao longo de dezenas de anos, se colocava na franja da procissão, como que proclamando «aí vem a Nossa Mãe», Lamy deixou-nos horas antes de Nossa Senhora sair em Procissão, quiçá numa caminhada histórica, entre a Igreja de S. Francisco e a Matriz.

Lamy, foi ao longo de toda a sua vida, quase sem tempo para ser menino, uma das grandes figuras, ditas populares do concelho de Loulé e sendo de igual modo um homem estimado por quantos o conheciam, também pelos seus préstimos, mas pela forma simples e honesta de liberdade e solidariedade como vivia.

Partiu agora, quando há anos a esta parte se «refugiara», no Lar da 3.ª Idade da Santa Casa da Misericórdia de Loulé, onde era feliz e exemplarmente acarinhado, afinal como toda a comunidade residente na Instituição.

A sua fuga para a Casa do Pai, solta mil memórias de quantos o conheciam e estimavam, e nós próprios recordamo-lo como um homem bom, educado e exemplar.

Era do seu megafone, que na origem não era mais que um funil gigante, feito no latoeiro existente ali na zona histórica, quando os latoeiros também eram gente, que Lamy apregoava as capas dos jornais e nos lugares onde a telefonia (o rádio) não se ouvia, cuja voz maior eram as interferências, dava conta do que se passava na estrada. Se Tenazinha tinha furado ou se Valério Chocolateira ainda andava de amarelo.

Loulé, acaba, portanto, por perder um dos seus notáveis, criado no seio de uma família séria, competente, educados e que tiveram, quiçá com prejuízo próprio, o facto de terem sido sempre solidários e gente de paz.

Lamy, não se limitava a evocar a sua função de pregoeiro, apenas no concelho de Loulé, porque ele se enfiava nas «caminetas» da EVA, do Santos, do Pilar ou da Rodoviária e era vê-lo por todos os lugares do Algarve, sobretudo, no Sotavento algarvio: Faro, Olhão, Tavira e Vila Real de Santo António, a dar voz ao que ia acontecendo e apregoando a sorte e, já noite, quando regressava a Loulé, ainda se entretinha por S. Brás de Alportel, a dizer que «O César Correia tinha feito uma grande arbitragem».

E aos Domingos de manhã, ou na segunda-feira, quando Loulé fechava as portas para o seu dia de descanso, era ouvi-lo: «Amanhã, na Campina, grande festival de Pista. Começa às 3 da tarde. Vítor Tenazinha, Valério Clara, Os Besouros, contra Jorge Corvo, Sérgio Páscoa e o Octávio Trinta. Loulé vai ganhar a Tavira. A Casa Iria oferece uma camisa ao vencedor e a Tia Anica, duas garrafas de bebidas»

Era assim, que Lamy dava vida à Vila de Loulé e no intervalo desse constante pregão, Lamy também dizia: - Está uma mala de senhora, que ficou perdida na "camineta", que às 10h chegou de Quarteira. A mala está na EVA, junto à Havaneza.

Foi o exemplo de que a humildade faz parte dos grandes homens, a riqueza maior é o caráter das pessoas

Como escreve Gonito, João Simões, no Facebook, em mais um soltar da memória sobre Lamy: «Vi agora no facebook a notícia triste…o falecimento do amigo Lamy. O último elemento d’uma família que dentro dos seus recursos, souberam ser pessoas integras e a cidade de Loulé acaba de perder o último elemento desta digna família. É esta gente humilde com a sua maneira de estar que fazem nós sentirmos a importância que têm p’ra nossa comunidade. Quem não conheceu esta família, poderei dizer…uma família que faz parte da história de Loulé e que a cidade se deve orgulhar destes dignos cidadãos. Também sei que a Santa Casa da Misericórdia soube dar carinho a este nosso amigo que hoje nos deixa. Bem-haja a todos aqueles tiveram a digna ação de o ajudar. O nosso grande amigo Lamy deixou-nos, fica na memória de todos aqueles que o conheceram. Já não vai à festa da Mãe Soberana…era velo na frente vestido a rigor com aquele ar feliz e respeitador. Também não faltava quando a banda musical saía, lá estava na frente com o mesmo entusiasmo e com ar respeitável. Como cauteleiro, com seu megafone apregoando a venda das cautelas e ao mesmo tempo dava a notícias de alguns acontecimentos que se passavam na cidade ou no concelho. Sim, o nosso amigo Lamy era de facto uma figura típica, pois era um Homem mentalmente são; não como algumas figuras que lhes dão este nome, mas infelizmente, tinham problemas mentais e a sociedade não os tratou. Perdemos o nosso amigo Manuel Vitorino Barreto Lamy. O nosso amigo estava em tudo que mexia com Loulé, um grande bairrista no sentido da palavra. Que descanse em paz. Foi o exemplo de que a humildade faz parte dos grandes homens, a riqueza maior é o caráter das pessoas. É o que infelizmente vai faltando neste mundo que vivemos. Abraço Guanito»

 

Os Homens do Andor?  “Quando eles descem conhecem-me e vêm-me abraçar”, recorda comovido.

Como um dia também escreveu a jornalista Verónica Chapuça na edição do jornal online A Voz do Algarve e no jornal em papel A Voz de Loulé de 7 de outubro de 2016 e, dado à estampa neste jornal:

[…] Não havia quem não conhecesse o vendedor de cautelas que dizia poesia a quem passava “com razão e a sorte na mão, aproveite a ocasião”. Prometia sorte e chegou a dá-la. “Vendi três vezes a sorte grande, uma em Quarteira, outra em São Brás de Alportel e outra aqui, em Loulé” recorda, “os números vencedores foram o 16561/20974/15557”, diz, cantando--os como um profissional. “E também vendi segundos e terceiros prémios. Eu corri o Algarve todo, de Lagos a Vila Real de Santo António a vender lotaria”, acrescenta.

Nunca saiu do País, mas viu muito dentro deste. Folião por natureza, no Carnaval e no resto do ano, acompanhou muitos grupos e associações da cidade por Portugal fora, anunciando no seu megafone os eventos da sua Terra Natal. Emocionado recorda com saudade um dos muitos amigos desse tempo, Fernando Soares, fundador do Rancho folclórico Infantil de Loulé, de quem ainda guarda uma fotografia na sua carteira de memórias. Ao lado desta, outras fotografias: do seu pai, do seu irmão e da sua Padroeira erguida pelos Homens do Andor. Foi à Mãe Soberana que este homem, que não casou (embora tivesse gostado), entregou o seu coração. Só isso explica o reluzir dos seus olhos e o misto de sentimentos que o invade quando houve o nome da Mãe Soberana. É com tristeza que revela que já não acompanha a imagem, como fizera ao longo de tantos anos. Mas logo depois deita vivas – Viva a Mãe Soberana!, Viva os homens do Andor! - e trauteia sem parar, a marcha que dá ritmo a esta Procissão. Há alguns anos que a dificuldade em andar não lhe permitem subir a ladeira, mas fica «na cidade» e aguarda a chegada dos Homens do Andor “Quando eles descem conhecem-me e vêm-me abraçar”, recorda comovido.

Na sua carteira, Lamy guarda também uma foto sua a vender cautelas, umas das mais emblemáticas. Sabe e sente que é uma figura da cidade. De família tem apenas um sobrinho, filho do irmão que perdeu num acidente. Poderia ser um homem só e triste, mas não é, Manuel Vitorino Barreto Lamy, sente-se acarinhado pelas pessoas da cidade e diz, com o seu espírito alegre, quase de menino, “sim, sou feliz!”.»

 Lamy vota fora de horas, permitindo com o seu voto a eleição de Joaquim Guerreiro, como Presidente do Louletano

Em busca de outros salpicos da memória deste homem bom e humilde e, que era apreciado por todos, vou à página 180 do meu Livro: VENCENDO A ESTRADA TENDO LOULÉ COMO BANDEIRA (75 anos de história do ciclismo Louletano) e descubro:

Quando em 1960. Joaquim Guerreiro, funcionário do Tribunal de Loulé, ganhou as eleições para Presidente do Louletano, num dos actos mais concorridos, e foram necessárias duas votações. Joaquim Guerreiro inesperadamente saiu vencedor, mas ainda mais surpreendente por um estranho voto de diferença.

Esta eleição, também é recordada por Alberto Narciso, pelo que teve de caricato:

«O acto eleitoral já tinha terminado e ia começar a contagem dos votos. Entretanto chega Lamy para votar e auscultada a mesa, ninguém se opôs a que Lamy votasse fora de horas, até porque o seu voto, para todos os observadores e os mais atentos, não iria mudar fosse o que fosse.

A verdade, é que após a contagem dos votos, Joaquim Guerreiro venceu as eleições por um voto de diferença e obviamente com o voto do Lamy, porque se não tivesse sido admitido o seu voto, continuaria tudo empatado.»

A Voz de Loulé, despede-se assim, com salpicos de emoção, do grande Lamy…

 

Por: Neto Gomes

 

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