Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor

A 30 de abril de 1974, o cais de Alcântara fervilhava de curiosidade. Da mesma forma que meio século antes, em 1917, a estação finlandesa de São Petersburgo recebera um homem de casaco escuro e olhar disciplinado, também Lisboa esperava o regresso de outro exilado que trazia nos ombros o peso de um ideal. Álvaro Cunhal chegava de Moscovo, vindo de um exílio de mais de uma década, e a história parecia repetir um dos seus símbolos mais poderosos: o do revolucionário que regressa à pátria para lhe mudar o destino.

O momento não foi inocente nem discreto. O Partido Comunista Português, clandestino desde 1926, emergia das sombras com uma confiança messiânica. O regime caíra há apenas seis dias e o país, atordoado pela súbita liberdade, olhava para aquele homem alto e austero como para o guardião de uma promessa. Cunhal representava a coerência, o martírio e a esperança de uma esquerda que resistira à prisão, à tortura e ao degredo. Tal como Lenine, quando atravessou a Europa num comboio selado, trazia um programa, uma fé política e um sonho de transformação total.

Na Rússia, o regresso de Lenine em abril de 1917 foi o início de uma viragem que desaguaria na Revolução de Outubro. O líder bolchevique soube interpretar o caos da guerra e o desespero popular, oferecendo um slogan simples e devastador: paz, pão e terra. Também Cunhal, em 1974, falava em terra para quem a trabalha, em controlo operário e em libertação social. A diferença é que Portugal não vivia um colapso militar nem um vácuo absoluto de poder. A revolução portuguesa nascera do interior das Forças Armadas, e não da rua ou do partido. Esse detalhe mudaria tudo.

Lenine tinha diante de si um Estado em ruínas, uma sociedade esgotada e um exército desfeito. Cunhal encontrou um país rural e pobre, mas ansioso por normalidade. A sua visão de uma transição para o socialismo puro, conduzida pela vanguarda do proletariado, chocava com o pluralismo nascente e com o pragmatismo dos capitães de Abril. O PCP tentou organizar os trabalhadores, controlar sindicatos e influenciar o MFA, mas a sua revolução encontrou resistências dentro e fora da esquerda. O “verão quente” de 1975 marcou o auge dessa tensão: Portugal esteve à beira de uma revolução à soviética, mas o contexto atlântico, a Igreja, os socialistas e o equilíbrio europeu impediram que o país seguisse o modelo russo.

Em ambos os casos, o ideal revolucionário enfrentou a realidade: em 1917, a utopia de igualdade desembocou num Estado totalitário; em 1975, a tentativa de vanguarda proletária foi travada por um compromisso democrático. A história parecia oferecer duas saídas: o dogma ou a liberdade. Cunhal manteve-se fiel ao primeiro, Lenine foi o seu arquétipo. Ambos acreditaram que a justiça social só se alcança pela disciplina ideológica. Mas enquanto na Rússia a revolução triunfou e se desfigurou no poder, em Portugal o fracasso político preservou o ideal como mito. O PCP não chegou ao governo, mas conservou uma coerência moral rara na história moderna.

A chegada de Álvaro Cunhal a Lisboa, com o rosto austero e a mão erguida em saudação, ficou gravada como uma fotografia simbólica. Não foi o início de uma revolução vitoriosa, mas o regresso de uma ideia que resistiu ao tempo e à prisão. O país que o recebeu queria liberdade, não ditadura do proletariado. E é nessa diferença que se define o destino português: onde Lenine abriu o caminho para o império do medo, Cunhal encontrou o limite da história e transformou-se, involuntariamente, no último profeta de uma utopia que o próprio tempo desmentiu.