Por Neto Gomes

"Olho para ti e vejo as misturas de sentimentos, revoltas e inquietações quando me falavas do teu João. Apetecia-te mudar o mundo.

Olhe para ti e descubro a paixão pela tua filha, como quem vê nela ainda a menina, a quem davas a mão e iam passear para parte incerta."[…]

Fui derrubado por esta passagem do meu curto traço de despedida ao meu amigo Rui Cruz, já depois da homília presidida pelo Padre Aquino, e antes do derradeiro adeus que nos permitiu escutar como vinco perfeito da sai identidade e paixões musicais, que lhe traziam amor e serenidade e como escolhas do Prof. Domingos Neto e dos filhos João e Sara, a  Missa in C Major K 167 Agnus Dei; Mozart  Requiem Mass in D K 626 3f Lacrimosa dies illa  Requiem K626 Introitus; Requiem Aeternam  Wolfgang Amadeus Mozart e Dance Me To The End of Love Leonard Cohen Official Video-2.

Quando conheci o Rui tendo como âncora as relações profissionais das nossas esposas, descobri que com o meu feitio eu tinha de conjugar os ditos com pinças e bisturis.

Rui era mais sereno, contido, pouco expressivo em relação ao meu irrequietismo, pois em cada pergunta que lhe fazia ele quase que me fuzilava com um olhar muito sério…

Era um extraordinário contador de histórias, não histórias vividas por estranhos intervenientes, mas por ele próprio. E dava-me um grande gozo ouvi-lo. O que o Rui não gostava é que eu estivesse sempre a inquiri-lo para que ele contasse e recontasse a história.

Uma das histórias que mais me marcou foi quando o Rui comprou um cabrito e transportou na bagageira do seu «2 cavalos», diga-se saltitante, também pela esburacada alcatifa em se ia transformando a EN 125. Agora também não está muito melhor. E sempre que o «2 cavalos» saltava escutava-se uma espécie de «aí, aí, aí» do cabrito.

Chegado às quatro estradas, o bom do cabrito lá foi cuidadosamente instalado no terreno agrícola do Rui, no entanto, num instante, o bom do cabrito libertou-se, saltou a vedação, e apesar do Rui nesse fim de tarde ter batido o record dos 200 metros de obstáculo, nunca mais o cabrito foi visto.

A fuga do cabrito, contado pelo Rui era para mim algo delirante, daí a adoração que eu tinha em que o Rui repetisse a história, uma, duas, cem vezes, o que o levava a ficar com os azeites.

- Calma Rui, não te zangues.

- É pá! – respondia ele – mas tu és muito chato…

Não sei se por ter sido ou não seminarista, Rui Cruz era um homem que nunca deixava nada para trás, como quem decalcava na sua vida, no seu dia a dia, salpicos que a Bíblia tange.

Ele era pescador, carpinteiro, canalizador, electricista, economista, pedreiro, servente, pintor, escoliador, desenhador e com uma astucia gritante para a cozinha. Lavar loiça é que não era com ele, missão que me deixava, diga-se, o nosso grupo sempre que nos encontrávamos, mesmo sabendo que não havia alvoroço sempre que eu partisse um copo, um prato ou entortasse uma colher ou um garfo.

E o gozo que me deu encontrar o busto de Camões, em Malcata, na terra do Rui.

Só que na minha descoberta, eu testemunhava que o olho cego de Camões, no busto em Malcata, era o outro, o esquerdo, e esta minha teimosia acabou por dar folhetim e o Rui, já sem grande paciência pedia à minha mulher para me aturar…

- Rui!

- Diz lá! Chato…

- Foste tu que fizeste o busto de Camões, aqui em Malcata?

- Flitos! Ó Flitos! – Era assim que ele tratava a minha esposa – Vê lá se aturas este gajo, que eu não estou para o aturar…

E às vezes, vezes incontáveis, telefonava-me para me dizer:

- Ouve lá! Precisas de azeite?

- Ouve lá! Vou a Malcata, queres um queijo?

- Ouve lá! Estás em casa…vou passar por aí…E lá deixava umas hortaliças e não sei que mais e ainda pedia desculpa: - É pá! Era o melhor que lá tinha…

Malcata, a terra onde nasceu e para onde abalou dois dias antes de falecer, com uma mão cheia de encomendas de queijos, que para ele eram os melhores do mundo...

Malcata, a terra onde nasceu e lhe abriu os braços, como Cristo na Cruz, para lhe escutar o derradeiro respirar, pondo a Fátima, o Júlio e Mãe Coragem, a coabitar num drama que jamais esquecerão. Um drama trágico, duro, doloroso. Um drama sem nome, para todos aqueles que o amavam...

E na hora, em que o peito parece mais sufocado e não controlamos a respiração, num curto ensaio de despedida, e com os olhos postos na urna do meu amigo Rui, afirmei:

"Rui

Amigo

Apetece-me dizer, saí daí e regressa para junto de nós, para junto daqueles e fomos todos, que sempre vimos em ti um ser humano fantástico, disponível, solidário, que às vezes parecia indiferente ao que o rodeava, mas nada lhe escapava.

Parecias distante, como se nada fosse contigo, porque estavas em todos os sítios ao mesmo tempo.

Às vezes, escorregavas de nós e desaparecias sem dizer água vai e, por mais que te procurássemos, só aparecias quando querias, quando sentias que tinhas feito todas as descobertas que necessitavas.

Depois diante do olhar espantando de todos nós, murmuravas só para ti com traços de ironia, coisas que não entendíamos e finalizavas com uma breve, mas sonora gargalhada.

Do Mar Báltico, a Malcata, passado pelo Mar das Caraíbas, até ao Guadiana, ou encalhados numa das muitas casas de amigos comuns e na tua, fizemos viagens maravilhosas, rimos um dos outros.

E como tu afinavas, quando eu te chamava Ministro da Economia, dizendo:

- Uma vez está bem, mas tu és muito chato.

Rui

Quem me dera que poder continuar a ser um chato para ti, seria sinal, que não irias faltar ao nosso próximo encontro.

Desde o primeiro momento, descobri em ti um homem bom, daqueles que só nos aparecem uma vez na vida, para quem não existiam obstáculos, que limavas todas as arestas, que nunca deixavas ninguém a falar sozinho e que fazias de cada momento, todo o momento da tua vida.

Nada para ti era obstáculo e mesmo discreto, as tuas análises eras tão assertivo, que às vezes, nos sentíamos vazios de ideias.

Vejo o teu olhar de felicidade quando nasceu a Laura. Oiço as últimas coisas que me disseste sobre ela e é por isso, que julgo que o mundo enlouqueceu ao tramar-te quando fazias tanta falta.

Olho para ti e vejo as misturas de sentimentos, revoltas e inquietações quando me falavas do teu João. Apetecia-te mudar o mundo

Olhe para ti e descubro a paixão pela tua filha, como quem vê nela ainda a menina, a quem davas a mão e iam passear para parte incerta.

Rui, já tenho saudades tuas, da pessoa que sempre foste, amiga de toda a gente e incapaz de dizer não, nem que tivesses que inventar o que nunca foi inventado. 

Culto, disponível, nascido para cuidar da família, empreendedor, de diálogo fácil, sempre pronto, que fazia de toda a sua família, o seu grande arco de vida e de esperança.

Rui, partiste e deixaste no prolongamento e continuidade da tua vida, a tua mulher, a Nélida, a quem a Laurinha sempre chamou de Nelida, mas que para mim será sempre a esposa, a avô, a sogra e a Mãe coragem

Que Deus vos ajude, que nós os amigos, vamos fazendo o que o mesmo Deus nos deixar o que quer dizer que nunca mais serás esquecido.

RUI JÁ TENHO SAUDADES TUAS

Obrigado por teres sido meu amigo e amigo da minha família.

Descansa em Paz…"

A finalizar e desafiando, que um dia possamos fazer uma grande tertúlia sobre o Rui Cruz, deixo aqui curtos salpicos, deste belo e contagiante poema de Fernando Pessoa:

 

Um dia a maioria de nós irá separar-se.
Sentiremos saudades de todas as conversas atiradas fora,
das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos,
dos tantos risos e momentos que partilhámos.
Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia, das
vésperas dos fins-de-semana, dos finais de ano, enfim...
do companheirismo vivido.

Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.
Hoje já não tenho tanta certeza disso.

Em breve cada um vai para seu lado, seja
pelo destino ou por algum
desentendimento, segue a sua vida […]

A saudade vai apertar bem dentro do peito.
Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente...

Quando o nosso grupo estiver incompleto...
reunir-nos-emos para um último adeus a um amigo.

E, entre lágrimas, abraçar-nos-emos.
Então, faremos promessas de nos encontrarmos mais vezes
daquele dia em diante.
Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a
sua vida isolada do passado.

E perder-nos-emos no tempo...

Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não
deixes que a vida
passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de
grandes tempestades...

Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem
morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem
todos os meus amigos!"

 

Legenda Foto: Rui Cruz, numa viagem pelo Mar Báltico, «aterrando» em São Petersburgo