Por: Drª Irina Martins

Deparamo-nos com muita frequência com a existência de prédios urbanos em estado de extrema degradação e que colocam não só em risco a segurança dos cidadãos que por perto passam, como constituem atentados à beleza paisagística e arquitectónica das urbes onde se inserem. Isto deve-se ao desleixo ou à incapacidade dos proprietários em promover a sua remoção, demolição, reconstrução ou renovação. São autênticas chagas urbanas, péssimos postais ilustrados que prejudicam a imagem colectiva de uma comunidade. Qual é o papel das Câmaras Municipais para intervir nestas situações onde o direito à propriedade privada colide com o interesse colectivo? Qual o quadro legal que define os poderes e os deveres das autarquias neste tipo de situações?

José Mendes Bota

 

Caro Dr. José Mendes Bota, desde já agradecer a sua questão, bastante pertinente e que dignifica este humilde espaço de perguntas e respostas aos leitores de “A Voz de Loulé”.

Sem grandes rodeios e indo diretamente ao cerne da questão, cumpre-me esclarecer que dispõem as Autarquias Locais de um mecanismo legal, previsto no Regime jurídico da Urbanização e Edificação (Decreto-Lei 555/99 de 16 de Dezembro)(RJUE) chamado Obra Coerciva, apesar de estar previsto há largos anos, o que é certo é que contam-se pelos dedos da mão as Autarquias que neste país o usaram como política de reabilitação Urbana para o edificado degradado e em más condições de conservação, que como bem diz, se tornam em “chagas urbanas”. Exemplo de sucesso na utilização deste mecanismo foi Coimbra, que reabilitou a sua baixa histórica recorrendo à Obra Coerciva.

Esta figura jurídica, aplica-se a demolições, recuperações, requalificações e afins, está prevista no artigo 91.º do supracitado Diploma. Isto porque é um dever de todos os proprietários de prédios (imoveis) “realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético”, (conforme o n.º 1 do artigo 89º do  mencionado Decreto-Lei), em situações que isso não aconteça, diz-nos o n.º 2 desse artigo que: “a Câmara Municipal pode a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, determinar a execução das obras necessárias à correção de más condições de segurança ou de salubridade ou das obras de conservação necessárias à melhoria do arranjo estético.”(esta é uma alteração recente introduzida pelo DL n.º 66/2019, de 21 de Maio) e veio esta alteração recente agilizar e facilitar o processo para as Autarquias, nomeadamente quanto à notificação do proprietário e posteriormente quanto ao pagamento e posse do imóvel.

Traduzindo isto para linguagem mais coloquial o que o artigo anteriormente citado nos diz é que é um dever dos proprietários manter o edificado, e em situações em que isso não aconteça a Câmara Municipal pode “obrigar” o privado a proceder às necessárias obras. Mas e que acontece se o privado não efetuar as obras e fizer tábua rasa da notificação da Autarquia?

Nesses casos e se o particular tiver sido devidamente notificado a Câmara Municipal poderá tomar posse administrativa do imóvel para dar execução imediata a obras, mas apenas nos seguintes casos: quando o proprietário não iniciar as obras que lhe sejam determinadas; não apresentar os elementos instrutórios no prazo fixado para o efeito; os elementos instrutórios apresentados forem objeto de rejeição; não concluir as obras dentro dos prazos que para o efeito lhe forem fixados.

Assim tratando-se de execução coerciva de uma ordem de demolição ou de trabalhos de correção ou alteração de obras, a Câmara Municipal substitui-se ao privado e executa as obras dentro dos mesmos prazos que foram fixados ao proprietário.

Mas questiona-se o leitor de quem pagará a fatura destas obras? Pois bem, as quantias relativas às despesas realizadas no âmbito da posse administrativa e execução coerciva são de conta do infrator (o proprietário), incluindo: os custos com o realojamento dos inquilinos a que haja lugar e quaisquer indemnizações ou sanções pecuniárias que a Administração suporte para o efeito. Uma vez notificado o infrator tem 20 dias para pagar as quantias voluntariamente. Findo o prazo as quantias são cobradas judicialmente em processo de execução fiscal, servindo de título executivo a certidão, passada pelos serviços competentes, comprovativa das despesas efetuadas. Para evitar a execução o infrator pode propor em alternativa ao pagamento e para extinção da dívida, a dação em cumprimento ou em função do cumprimento ou ainda a consignação de rendimentos do imóvel nos termos da lei.

Ou seja, o proprietário será sempre o responsável pela fatura, mas caso não tenha dinheiro para pagar, poderá entregar a propriedade ou posse do imóvel à Autarquia, mas em alternativa à cobrança judicial da dívida em processo de execução fiscal, e em função de um juízo de proporcionalidade, a Câmara Municipal pode optar pelo arrendamento forçado transferindo-se a posse do imóvel para a Autarquia. E assim em vez de proceder a cobrança da dívida, em caso de falta de pagamento, pode optar por receber as rendas que seriam pagas ao proprietário, durante o período a seu cargo.

Na prática, a Câmara Municipal irá receber as rendas relativas a contrato previamente existente à intervenção que se mantenha em vigor ou, quando este não exista ou tenha cessado a sua vigência, as provenientes de novo contrato. Em caso de celebração de novo contrato de arrendamento, a renda a praticar não pode ser inferior a 80% do valor mediano das rendas por m2 de novos contratos de arrendamento de alojamentos familiares no município respetivo, de acordo com a última atualização divulgada pelo Instituto Nacional de Estatística. O arrendamento nestas condições durará pelo «prazo estritamente necessário» para saldar a dívida, estabelece o diploma.

Mas questiona o leitor, quando poderá o proprietário recuperar a posse do imóvel? O proprietário interessado em retomar a posse do imóvel deverá manifestar por escrito essa intenção, com 120 dias de antecedência, devendo juntar à comunicação o comprovativo do pagamento integral da dívida caso esta não esteja ainda totalmente liquidada. Liquidada então a totalidade da dívida, se o proprietário não retomar a posse no prazo de vinte dias a Câmara Municipal poderá continuar a disponibilizar o imóvel para arrendamento, sendo que, nesse caso, o valor das rendas será depositado em conta bancária aberta especificamente para o efeito (caso o proprietário não a tenha indicado), e a Câmara Municipal poderá ressarcir-se das despesas realizadas para fazer face aos encargos de gestão e manutenção do imóvel durante o período em que durar o arrendamento.

 

Apesar da forma “ligeira” com que expliquei este mecanismo legal da Obra Coerciva, existem bastantes formalidades legais e prazos, que a Autarquia tem de cumprir, que poderão culminar em nulidade ou até em casos mais graves ilegalidade do acto. Como tal e se for proprietário que se viu alvo deste tipo de intervenção Administrativa, sugiro que esteja atento a todos os procedimentos que foram tomados de forma que possa defender a sua posse ou propriedade.

Contudo e manifestando a minha opinião pessoal, a verdade é que este mecanismo legal pode bem ser a solução para dois grandes problemas atuais que são, a reabilitação/requalificação urbana por envelhecimento e deterioração do edificado bem como para a habitação, nomeadamente no que concerne ao mercado de arrendamento que se encontra a valores proibitivos e incomportáveis.

Caro Dr. José Mendes Bota, espero ter respondido à sua questão, espero que nos continue a ler e acompanhar.

Recomendo ainda a todos os eventuais visados por uma Obra Coerciva que não se coíbam de consultar um Advogado que pode mais facilmente ajudar em todo este processo e garantir que os seus direitos e legalidade são respeitados.

E não se esqueça a Justiça não se faz sem Advogados!