por Miguel Duarte | Escritor, DJ e Tradutor | jmduarte.md@gmail.com

Quando David Cameron prometeu aos eurocépticos do seu partido um referendo sobre a permanência na UE estava longe de imaginar o terramoto que agora vivemos. Numa perigosa jogada de poker político, permitiu que o futuro de todos nós fosse apanhado no fogo cruzado entre fações rivais do Partido Conservador. Pior: deu força ainda a partidos populistas, que mancharam de simplismo um debate que, mais que nunca, se exigia racional e sereno.

Cameron arriscou e perdeu. Perdeu porque nunca conseguiu manter a frente pró-UE à margem de guerrilhas partidárias. Perdeu porque nunca soube ‘vender’ a UE como algo mais que um mal menor. Finalmente, perdeu porque, num cenário de pressão económica e social, subestimou a eficácia que mentiras e slogans têm sobre um povo sequioso, não de lógica, mas de vingança.

A carreira do ainda primeiro-ministro britânico eclipsou-se neste ocaso da sensatez. Porém, ao jogar a cartada da demissão, fez o impensável para quem já bailava sobre as cinzas da UE: obrigou-os a tirar a máscara. Primeiro, para desfazerem as promessas da véspera, ficando à vista o culto de personalidade que os orientou. Depois, para confessarem à luz do dia a falta dum plano de saída.

Se, uma noite antes, a ala eurocéptica dos Conservadores, com Boris Johnson à cabeça, declarava fidelidade a Cameron, não é por acaso. Seria Cameron a acionar o Artigo 50 e, com isso, a condenar-se à lenta imolação da sua vida política. As portas do poder, essas, ficariam escancaradas a quem acabara de derrotá-lo. Tudo seria perfeito.

Mas a verdade é que, aberto tão cedo este vazio na liderança, a cada dia que passa fica mais claro que ninguém quer assumir o ónus dessa decisão. E em Setembro, quando o espectro da recessão, desemprego e desintegração for mais certeza do que augúrio, as eleições nos Conservadores poderão ditar a ascensão de um líder pró-UE, o que equivaleria, possivelmente, a um mandato para encetar uma renegociação com a UE e abrir as portas a um segundo referendo nestes novos termos. Também o humor do eleitorado, suspeito, será então diferente. Não creio por isso que o Artigo 50 seja acionado. O bom senso tem formas que a idiotice desconhece.

Por cá, estará a aguardar uma UE que, se não pode facilitar a vida ao Reino Unido, também não quererá hostilizar um país que terá que ser sempre um parceiro próximo. Uma coisa é certa: a UE saberá adaptar-se por virtude da sua democracia.